Andar de mota
Que alegria! Está um dia radiante cheio de sol! O céu está azul, o vento não corre e o piso está seco!
Apodera-se de mim uma vontade louca de a ir buscar...
Visto-me desportivamente, agarro no blusão e nas luvas e lá vou eu rumo à garagem.
Não fica muito longe da minha casa. São talvez uns 200 metros que faço sempre com ansiedade.
Aos anos que gosto de motas.
Comecei como pendura. Fizesse chuva ou sol, vento ou frio, lá ia eu e os condutores da altura: amigos, namorados, conhecidos... eu queria era andar de mota.
Fosse com quem fosse!
Era jovem, o sangue fervia-me nas veias e nem pensava nos perigos que corria.
Felizmente nunca me aconteceu nada de grave. Apesar de ter sido co-protagonista de uma série de malabarismos, corridas e aventuras alucinantes, em cima de motas tão frágeis como inseguras.
E eu delirava com esses passeios. Ultrapassagens perigosas, curvas fechadas a roçar com os pisas no chão, andar colados aos carros para aproveitar os “cones de ar”... enfim, loucuras de adolescentes.
Mais tarde decidi passar a ser condutora. Comecei com uma acelera.
Ainda não tinha nem seguro nem licença e já andava por aí a rasgar. Adorava!
E como era uma mota pequena e leve eu fazia dela o que queria... Só não conseguia fazê-la andar mais!
Passados uns meses aventurei-me e comprei uma maior: uma Serow 225!
Isso é que foi uma bela compra! Já ninguém me agarrava.
Andávamos juntas para todo o lado. E com esta até na ponte já podia passar.
Era uma maravilha!
Arranjei uma série de amigos motoqueiros e todos os fins de semana lá íamos nós para o Cabo da Roca, ou para a praia, ou simplesmente andar de mota, por aí...
“Sem pendura... que a vida já me foi dura p'ra insistir na companhia” canta o Luís Represas, e eu assinava por baixo.
Andava sempre sozinha e não aceitava penduras. Era eu e ela.
Mas gostávamos muito de andar em grupo.
Até que um dia tive um acidente. Sem culpa nenhuma fui parar ao Hospital com uma série de mazelas e um medo novo que ia ser difícil de ultrapassar...
Foi aí que a nossa relação se deteriorou...
O”bichinho” continuava cá dentro, mas cada vez que me sentava nela não conseguia deixar de tremer. Era indescritível, e muito superior às minhas forças.
Desisti de lutar, e vendi-a.
Mas uma paixão como esta não passa assim...
Mais fácil é esquecer o medo, e foi isso que acabou por acontecer.
O ano passado comprei outra. A mota dos meus sonhos. A que sempre desejei ter: uma XT 600!
Quando a fui buscar, a Évora, já não conduzia uma mota há 5 anos.
Ia um bocado preocupada mas quando a vi, azulinha, linda de morrer, a convidar-me para dar uma volta, não vacilei.
Viemos até Lisboa sem parar, sem pensar, sempre a cortar o vento.
Com esta mota a paixão é diferente. Mais serena, mais consciente. E além disso partilho-a com o meu marido, que não tem carta mas que adora andar à pendura.
E quando vamos os três dar uma volta sinto-me a mulher mais feliz do mundo.
No entanto sinto uma responsabilidade acrescida. Já não sou só eu e ela.
Há um terceiro elemento, uma vida que depende da minha condução e da prestação da minha mota.
É uma grande responsabilidade que, por vezes, me divide e me faz pensar se o sentir este prazer poderá compensar todos os riscos que ele acarreta.
Adoro andar de mota, sentir a velocidade, a liberdade e o poder que ela me transmite... isto para não falar da vaidade, porque “uma miúda” a conduzir uma XT chama sempre a atenção ;)
Por outro lado, tenho esta sensação de que tudo pode voltar a acontecer. De um momento para o outro posso magoar-me a sério, e desta vez pode ser para toda a vida...
E hoje já não tenho 18 anos. Já tenho responsabilidades, deveres, pessoas que dependem de mim e da minha saúde...
Claro que de carro também posso ter um acidente. Mas é menos provável magoar-me tanto como de mota.
Será que já tenho idade para ter juízo? Ou será que não há idade para isso?
Sei que sou uma condutora consciente e responsável, mas não estou sozinha na estrada... E mesmo a estrada pode ser perigosa. Tudo pode acontecer.
Afinal para morrer basta estar vivo...
Se calhar a resposta está mesmo nesta frase. Tudo na vida acarreta riscos. No entanto, não é por isso que deixamos de viver, e de arriscar.
Todos os dias saímos de casa sem ter a certeza de voltar ao fim do dia.
Tantas coisas podem acontecer. E no entanto saímos.
Conduzir motas é perigoso. Mas viver também o é.
Ao menos que vivamos felizes...
0 Comments:
Post a Comment
<< Home